segunda-feira, 28 de junho de 2010

O Paradoxo do Último Pedaço- parte I

Comprido e assustador. O frio cinzando-se, evaporado devagar dentro de cada respiração silenciosa na rua. E tudo exalava mudez naquele dia. As mãos trançando pés cruzando gestos pintando pensamentos sugando-se.

- É vida. É sempre vida.

Caminhara cerca quinze quadras até aquele março. Nos olhos, cansaço e fome de qualquer coisa mais parecida com nascer-crescer-morrer do que aquela apatia dilacerante em seu peito. Do que aquela coisa que mal ousava chamar de vida. Do que aquelaes segundos estúpidos congelados na película dentro de seu bolso esquerdo. Do quê, do quê precisava? Vá lá, não esbanjava suas glórias, mas também não chorava misérias. E o quê? O quê?

Gostava da rua por onde caminhava. Acreditava estar ali o essencial a uma boa tarde: cinemas, bancos em largas praças, livros, cafés e violões. Claro, flores, pequeninas, muitas, muitas flores. Mas para quem? Flores não foram feitas para serem invisíveis, disso sabia muito bem. E ali, esquecidas num canteiro qualquer de uma avenida imunda, não deveriam nem existir. Deveriam ter cheiro de fumaça, de ódio, de cores puras dissolvendo-se naquela massa cinza morta.

- E as flores foram feitas somente para a vida.

Irritava-se quando pensava nessas coisas. Perdia tempo, sentia sua vida vazando gota a gota. Verde. Atravessa, pois.

Como queria uma pinça para pegar seus pensamentos nas mãos! Como uma linha fininha e escorregadia, pegaria-o nas mãos, cuidadosamente acariciaria cada ponto sem nó. Desenhos musicados numa só nota. Enrolaria-os nas pontas dos dedos, esticaria até o limite, brincaria de tudo, tricotaria caminhos sem volta...

Quando... A fome, outra vez, a fome! A fome torcia-lhe o estômago, agarrava suas finas mãos às paredes do esôfago numa tentativa sôfrega de chegar-lhe à boca, tomando sua voz num grito de espanto:

- Fome!

Direita, final do corredor à esquerda, dois lances de escada abaixo. E uma mágica vitrine de docinhos de toda a sorte. Chocolates, cremes e nozes crocantíssimas estalando os olhos num pisca-pisca de desejo. Ah, e os morangos! Que gracinhas! Tão vermelhinhos, criancinhas encapuzadas fazendo festa na neve, rolando uns sobre os outros, um pique-esconde afirmando cor e textura macia naquele inverno tão frio. Que mimo! Que podemos dizer de mal sobre os morangos, tão redondinhos e graúdos?


- Este aqui!– apontou.
- O branco? - respondeu a atendente.
- Não, o da esquerda. Esse, esse mesmo. Um pouco maior, só mais um pouquinho... Isso, está bem, está bem.


Agradeceu, pagou, sentou, comeu. Tudinhozinho. No final daquela trilha de farelos viajantes, lá, imponente, retumbante ficou o último pedaço. Sim, o último pedaço, a última estátua imperando sobre os destroços de Gargantua e Pantagruel. Lá está ele, duas camadas de chocolate macio recheadas com creme de coco, cobertas delicadamente com brigadeiro e granulados. O último dos monumentos da vontade, o derradeiro suspiro de satisfação.

Poderia comê-lo de uma só vez, numa só mordida rápida. Quase sem mastigar. Nem sentir ou gostar. Comeria, e pronto. Mas e depois? Ainda teria fome, ainda sobraria tempo... E o tempo vazio de mais é vida de menos.


- Em vida que sobra, pensamento ruim não demora.


E era, certamente, uma pessoa que procurava se ocupar. Queria viver para inúmeros pedaços como aquele.


- Olhe aqui – disse uma voz macia, quase inaudível – aqui em baixo.


Assustou-se. Estaria louca? Não tão já, oras!

Continua.

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