sexta-feira, 7 de maio de 2010

Descalças

"Eu não caibo mais nas roupas que eu cabia."

- Joguei fora. De uma só vez, coloquei o indefinível tudo embora. Brinquei com o que não sabia, disse o que não fazia, menti verdades inaudíveis enquanto gritava dentro de espelhos cegos, no estilhaçado conforto de reflexos picotados em que não me via.

Dito isso, sentou-se em si com as sacolas nas mãos levando causas e fins. Era uma pessoa, sobretudo, limpa, tinha nome, sobrenome e pertences. Dentro dos meandros da sanidade, maquinava inutilmente a compreensão do ponto exato em que a cólera quimicamente se separava da alegria, a gula da náusea, o revés ao invés da sorte. O sabor dos dissabores e o avesso do avanço.

Seu não-ser era ela e só, pesou muito, coisa muito insuportável, não sabia como carregar consigo aquela fenomenologia de meia tigela. Ou fosse tudo um, ou fosse cada qual para seu lado - e lá ficasse. Mas aquela fusão, não, era demais, o mundo todo não cabia em seu estômago. Ficaria com a metade, a metade estava bom.

A metade? Não, não podia. Impossível. Ficou, pois, com nada além dos limites de sua própria pele. Nua, era exagero vazio que perambulava corredores apertados, labirintos apinhados de olhos inquisidores que se revelavam num lampejo intermitente. Sufocantes espantos, críticas finas e ferozes sibiliavam-lhe aos ouvidos, chicoteando sua pele de "Disparate!", "Vergonha!", "Sem juízo!". Ensaiou cobrir-se com as mãos, pernas e olhos fechados - adiantou menos que nada. Persistiam os insultos gratuitos contra seu corpo desnudo no centro daquela maldita roda de acusadores. Desvelada, expandia-se em sentidos plenos e, assim, não podia, não podia, não podia! Não colocaria roupa alguma!

Tinha de se cobrir, tinham de colocá-la sob o manto da mentira. "Não existe mais nada dentro de ti, cubra-se já!" - chicotearam-lhe outra vez. Nunca antes se vira nudez tão suja. Foram-se os pertences, nome e rosto. Faltavam-lhe sentidos, todos eles. E ela não se renderia, as máquinas fumaçando nas ruas não levariam a barbárie à sua calçada. Simplesmente não precisava mais daquilo tudo, desviou daqueles tantos olhos e saiu da encruzilhada - pela porta da frente.

Já não existia. Era nada, era tudo. Porque, sozinha, não precisava fazer sentido para ninguém. Sentia o universo inteiro, numa garfada só, abocanhava qualquer sinestesia tateável, mastigava, engolia, se enchia. Satisfez-se. Insignificou-se.