domingo, 31 de outubro de 2010

Crono continho

Casou e não sarou. Sim, ouviu aquela história de novo, de novo não. Nasceu precisamente às três da manhã -aquela, a hora de cinema! Um rabisco, a priori, depois o esboço que se fez corpo, então, alma, até virar memórias andarilhas e patéticas.
Guardava consigo o devir que nunca, que nada. E em cada flor meticulosamente costurada em seu vestido se via a nota trêmula um dia já semeada e jamais colhida. Arremessada de volta, talvez. Mas calma, não antecipemos as coisas. Nem a exageremos tanto assim.
Então conta.
Aprendeu a andar bem depois de conseguir cantar. Foi assim sim. Sério sério. Pequenina mal se segurava sentada e já agitava os bracinhos no mi mi mi, lá si. E olhar, então, um tudo, com aqueles mesmos ! Só não andava, dependia. Difícil é se equilibrar no chão quando se tem vocação para flutuar. E aí, não andou, demorou. Pulou o engatinhar, só ia de canto a canto. Cantando ainda, cantando, até os pés passaram a pianar.
Mas lembram de que só pôde andar quando o pai, desiludido, resolveu ensinar a andar com a cabeça. Enfiou-lhe o lápis na mão e se deu que andou. E correu. E todos os ponteiros, de todas as torres, pulsos, paredes e papéis, junto correram tão rápido a ponto de ela neles tropeçar. Foi a pressa, amiga da imperfeição. Foi fundo, doeu, se doeu, até parou no hospital por uns dias.
Que sina. Até quando o conheceu várias vezes. Ali, no seu canto, quis ele cantar também muito até cansar. E se cansou algumas outras vezes, para n'outras descansar. Vez nenhuma sarou.
A enganaram, tanto, assim, pobrezinha, prometeram que iria sarar, não tão depressa.
Ainda ninguém sabe que o tempo é outro quando se flutua...

domingo, 17 de outubro de 2010

godblessthedaylight

um corpo rodopião quebrando em três. joelhos, braços e pescoço - para o desamparo em que ninguém jamais deveria viver


Nessas horas fico sabendo que a vida é mesmo estúpida. Uma queda imensa muito estúpida. Um punhado de cores rolando para o desencontro deste abismo infinito.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

O Mundo Imaginário do Dr. Parnassus

Eu poderia, simplesmente, mentir e dizer que a presença de Heath Ledger no elenco de O Mundo Imaginário do Dr. Parnassus, dirigido por Terry Gilliam, não influenciou o meu interesse pelo filme. No entanto, ao contário de uma esmagadora maioria que ansiou por conferir o resultado da derradeira atuação de Ledger, o que mais despertou a minha curiosidade foi, com o perdão da palavra, a ausência do ator, que foi resolvida de maneira bastante criativa após sua trágica morte em janeiro de 2008, período inicial das filmagens.

Precisaria assistir a O Mundo Imaginário de Dr. Parnassus mais algumas vezes para começar a entendê-lo de verdade. Ainda assim, arriscarei algumas linhas confusas que tentam exprimir o imenso impacto que o filme provocou em mim.

"Começando pelo começo", falemos do protagonista da história: o Imaginário. Muito além de uma mera representação do pensamento humano, na película, ele é o grande responsável pela existência do Universo, seja ele coletivo ou individual. Desse modo, uma interpretação baseada em teorias psicanalíticas seria quase imediata, porém, não sou nem um pouco gabaritada para falar do filme nesses termos. Atenho-me, pois, aos aspectos subjetivos da obra, isto é, às imagens que refletiram meus sonhos e paixões.


O Imaginário é uma alegoria criada pela "grande mente" do Dr. Parnassus que, quando jovem, viveu em um mosteiro até o dia em que foi visitado pelo Diabo, o qual queria entender qual era a ocupação do monge. Ele explica que, assim como seus companheiros religiosos, seu dever era contar a história do Universo a fim de garantir a sustentação da vida. O Diabo, partidário da ignorância e do mundo apartado dos mitos, duvida dessa explicação e propõe, assim, uma aposta: venceria quem primeiro conquistasse 12 discípulos de suas respectivas crenças. "O poder da imaginação de transformar e iluminar nossas vidas", conforme contaria Parnassus, anos mais tarde, a sua filha, venceu "as necessidades do perigo, do medo, da lendária bênção da ignorância". Como prêmio, o monge conquistou aquilo que ele sempre havia cobiçado: a imortalidade. Passados alguns anos, Dr. Parnassus toma consciência de que a vitória não fora um ato de bondade do Diabo, mas sim uma desgraça anunciada: ninguém mais queria ouvir suas histórias.


É assim que o filme começa, com o Doutor e sua trupe - seus dois ajudantes e sua filha - vagando numa carruagem pela Londres dos dias atuais, imersa na linguagem de sua modernidade autossuficiente. Uma cidade que fala a língua do Diabo. A cena é visualmente impressionante não só pelo contraste entre a miséria urbana e a claridade onírica, mas também pela excelente direção de arte da película. Detalhes e cores estonteantes compõem o palco acoplado à carruagem onde Mercúrio, o mensageiro dos deuses, convida os transeuntes de uma rua londrina a viajarem através da imaginação por meio dos grandes poderes do Doutor.


Esteticamente semelhante a um teatro de marionetes, o espetáculo apresentado pela trupe de Parnassus nos faz lembrar de algo perdido em nós mesmos quando crescemos, mas que ainda repousa em silêncio dentro de nossas almas: a necessidade vital de caminharmos para dentro da imaginação. Ao atravessar o espelho localizado no centro do palco (uma belíssima metáfora que renderia linhas e linhas afora), o espectador entra em um universo inusitado, para não dizer um sonho bizarro, onde seu inconsciente se mistura à mente do Doutor.


Terry Gilliam cria, assim, uma das mais belas representações cinematográficas da humanidade que já vi. Pintando com as cores do absurdo o plano do mito, representado pela extensa teia do Imaginário, o diretor nos faz refletir sobre quem somos e de quê são realmente feitas nossas escolhas. Isso sem falar das ácidas críticas que ele faz contra diversas instituições de nossa sociedade: da Filantropia à Imprensa, nenhum de nossos hábitos grotescos é poupado da ridicularização.


E onde Heath Ledger entra na história? Ele interpreta (magistralmente, diga-se de passagem) Tony, um megalomaníaco encontrado, pela filha e pelos assistentes do Dr. Parnassus, aparentemente enforcado em uma ponte. Tendo perdido a memória após o incidente, ele passa a viver com a trupe do Doutor, reestruturando a apresentação do grupo a fim de atrair mais "clientes" - a cena mais hilária do filme, na minha opinião.


Ao que parece, Ledger faleceu nesse estágio das filmagens. Apesar de profundamente abalado com a morte do companheiro, como ele mesmo afirmou em algumas entrevistas, o diretor tomou fôlego e deu continuidade ao projeto de uma maneira genial e convidou três atores para interpretar Tony: Jude Law, Colin Farrell e Johnny Depp, amigo de Ledger. Dispostos a doar seus cachês para a órfã do ator, os três deram o último toque de genialidade em O Mundo Imaginário de Dr. Parnassus, fragmentando, brilhantemente, a imersão da personagem no plano da imaginação. Pena que a um preço tão alto.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Mostra “Fernando Pessoa, Plural como o Universo”



“Sê plural como o universo!”
Em cartaz no Museu da Língua Portuguesa, mostra sobre o escritor Fernando Pessoa convida os visitantes a descobrir o universo do poeta português


O elevador é um capítulo à parte na história do Museu da Língua Portuguesa. Os ocupantes são recebidos pela inconfundível voz de Arnaldo Antunes que, desde 2006, ano da viagem inaugural do envidraçado meio de transporte, embala visitantes e ascensoristas durante seus trajetos pelos três pisos do prédio.

O ex-titã recita, rouca e incansavelmente, palavras de diversos idiomas num “poema concreto de uma nota só” pouco apreciado pelos trabalhadores do ascensor. Sob a garantia de anonimato, um funcionário revelou que eles sequer podem ouvir seus próprios tocadores de música, ainda que de maneira discreta. De fato, a literatura se mostra indelével em todos os ambientes do museu.

As portas de ferro do elevador se abrem no primeiro andar e, no mesmo instante, aparece Fernando Antonino Nogueira Pessoa: “o mais brasileiro dos poetas portugueses”, segundo Carlos Felipe Moisés, um dos curadores da exposição “Fernando Pessoa, Plural como o Universo”, em cartaz no museu desde o último dia 24. A fotografia do poeta estancado ali, eterno em seu caminhar pelas ruas de Lisboa, tem um quê de mistério: não se sabe se ele vem nos cumprimentar ou se foge sorrateiro de nossas vistas, legando-nos a tarefa de descobrirmos sozinhos os caminhos de sua obra.

A disposição da mostra não poderia representar melhor a lógica (ou a falta dela) da produção de Pessoa. Não espere o visitante que encontrará um roteiro pré-definido em seu trajeto pela exposição: a vida e a literatura do autor estão dispostas tal qual um labirinto, onde versos se misturam a um sinestésico jogo de luzes e sons.

A ruptura do indivíduo moderno, característica principal da obra do “poeta fingidor”, é representada por meio da ruptura do espaço – o cenário resume-se a um grande palco por onde desfilam seus heterônimos. Os mais famosos: Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Bernardo Soares e Ricardo Reis.

Dentre os ambientes da exposição, destaca-se uma espécie de sala dos espelhos, que propõe, em meio ao som de versos do poeta, a descoberta dos diversos “eus” escondidos em cada reflexo do visitante.

Também impressiona a instalação destinada à poesia épica de Pessoa, a qual busca resgatar as glórias conquistadas por Portugal à época das Grandes Navegações. Para representar tal aspecto da obra do poeta, trechos dos poemas “D. Sebastião” e “Mar Portuguez” são projetados em um banco de areia, como se fossem escritos por uma mão invisível querendo lembrar, tal qual o povo lusitano, suas glórias diante do mar.

Por meio de fotografias, desenhos, reproduções de periódicos do início do século XX e de documentos raros, o visitante, mais do que descobrir a riqueza da obra de Fernando Pessoa, entra em contato com a vida do poeta que, como poucos, conseguiu representar o homem de seu (e de nosso) tempoo. Afinal, como ele mesmo explica em um de seus versos, “viver não é necessário, o que é necessário é criar”.
Imagem: Yugo Tanaka/UOL

quinta-feira, 29 de julho de 2010

As palavras e o argonauta

Explorando, aqui e acolá, o microuniverso demarcado pelas quatro paredes de meu dormitório, pouso numa terra vizinha às prateleiras, próxima ao satélite Aquário-Redondo. Lá, encerradas entre duas fileiras, algumas dezenas de livros e cadernos guardam passaportes para outros mundos, onde centenas de vidas habitam, eternamente, incontáveis galáxias de palavras.
Passo os olhos, da esquerda para a direita, de cima a baixo sorteio títulos e encadernações diferentes... Num átimo, suga-me o olhar o caderninho brochura. O interior da capa vermelha guarda um oceano de horizontes pautados, onde singra, no espaço solitário de uma página em branco, uma canoinha levando, dentro de si, as seguintes palavras de Fernando Pessoa: “Ler é sonhar pelas mãos de outrem”.
A pequena embarcação navega, por alguns instantes, de um olho a outro, até decidir, por fim, fazer dos meus pensamentos o cais de sua significação. Desembarcam, então, uma por vez. Pedem compreensão. Escuto todas com muito cuidado, porém, elas nada parecem dizer além do som de seus fonemas.
“Ler” e “sonhar” - uma ponte, de fato, desmoronou entre os reinos das metáforas e das conjunções! E, involuntariamente, logo após tamanha constatação, me vejo reconstruindo-a, buscando tijolos num depósito escuro, bem no fundo da memória, tentando resgatar a primeira vez que li e a primeira vez que sonhei,
Impossível: a lembrança das letras é deveras posterior à do sonho. Devo, pois, me lembrar da primeira vez que sonhei enquanto lia... Sonhos meus, sim, sim!
Reza a lenda que nossos sonhos são colagens animadas de nossas frustrações, sonhos ou desejos mais profundos. Desse modo, noite após noite, vemos pedaços da vida que não vivemos projetados, feito uma película, sobre nossos olhos fechados. Assistindo a esse filme de uma cópia só, tentamos resolver nossas pendências com o inconsciente (ou com nós mesmos). O resultado dessa experiência é, quase sempre, ambíguo: ora acordamos aliviados, ora profundamente angustiados.
Bravo! E não nos provoca mesmíssima coisa, a literatura? Incômodos, perturbações, sorrisos... Vemos tudo ali, impressa em papéis jornal e Masterset, nossa vida diariamente perdida e que, num ato desesperado, tentamos recuperar ao engolirmos, com olhos vorazes, sujeitos e predicados da existência que não nos pertence.
Num ato confuso - não sei, ao certo, se de aprovação ou censura -, embarcam apressadas as palavras de volta a seu período. Voltam todas para o mundo branco das páginas.
Devagarzinho, vai-se embora a canoinha, deixando atrás de si ondinhas pequeninas, uma dentro da outra, dizendo: “Para todas as vidas, um sonho por um livro”. Foi-se inteira, a canoa, para dentro do Pessoa. E eu, aqui, ainda encenando o final do derradeiro adeus, brincando com o que sobrou das grandes e pequenas ondas na onírica vastidão do pensamento perturbado...

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Poeminha para fazer dormir

Virou-se mar, virou-se onda

Em gota cada corpo nu

O movimento seco

Do vento cru

Lave o sal

Do sol, amor

Salpicando

Marsalgando

A maresia

azul

"Almas à Venda"


Fãs de Allen e Gondry: uni-vos!
Com elementos característicos dos filmes de Woody Allen e Michel Gondry, “Almas à Venda” estréia dia 9 de julho nos cinemas brasileiros



Talento e técnica, à primeira vista, podem ser entendidos como competências humanas complementares. Afinal, somente existe arte quando ambas se complementam, isto é, quando a técnica torna-se um meio pelo qual o talento se manifesta. No entanto, tal relação, quase simbiótica, esbarra numa dicotomia de ordem prática: técnica é matéria e o talento, alma.
O que se pode, pois, esperar de um ator desalmado? É exatamente isso o que acontece em “Almas à Venda”, comédia dirigida por Sophie Barthes. Na película, Paul Giamatti, o desajustado Harvey Pekar de “Anti-Herói Americano”, interpreta a si mesmo como um ator às voltas com seu atual trabalho: a peça “Tio Vânia”, de Anton Tchecov. Giamatti não só coloca demasiada dramaticidade numa interpretação que, para o diretor do espetáculo, deveria ser cômica, mas também é incapaz de se dissociar de seu papel ao final dos ensaios.
O ator passa, então, a se sentir, como ele mesmo descreve, “pesado”, quase deprimido. A fim de ajudá-lo a sair de tamanho impasse, um amigo sugere que ele conheça o “Depósito de Almas”, uma espécie de clínica dotada de modernos equipamentos capazes de retirar a alma de seus clientes e torná-los, assim, mais felizes. Qualquer semelhança com “O Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças”, de Michel Gondry, pode não ser mera coincidência.
Apesar de contrariado, Giamatti decide ir ao incomum depósito. Convencido pelo Dr. Flintstein (David Strathairn) de que, ao final do processo, sentir-se-ia muito melhor e seria mais em suas atividades diárias, o ator decide retirar sua alma. Sentindo-se “leve”, ele volta para casa e para os ensaios, mas não a sua vida normal: além de não conseguir interpretar Vânia como outrora o fazia, Giamatti torna-se um homem insensível, prejudicando o relacionamento com sua esposa, Claire (Emily Watson). Arrependido, ele tenta colocar sua alma de volta, porém, ela havia desaparecido. Giamatti inicia uma verdadeira peregrinação atrás de sua alma (e de seu talento), viajando, inclusive, até a Rússia, país onde fica a sede do “Depósito de Almas”.
Merecem destaque o humor irônico e as piadas feitas pelo protagonista sobre a própria tragédia, semelhantes àquelas feitas por alguns dos personagens típicos de Woody Allen. Tal comparação não é equivocada, já que a idéia do filme nasceu de um sonho que Sophie Barthes teve após assistir a “O Dorminhoco”, de Allen.
“Almas à Venda” é uma deliciosa e bem-humorada reflexão sobre a progressiva mecanização de nossa sociedade, na qual a tecnologia e o controlado pensamento racional sobrepõem-se às nossas desordenadas emoções. É, assim, um grito anti-positivista contra a desumanização do trabalho e da arte - esta última, cada vez mais “desalmada” dentro do que se convenciona chamar de Indústria Cultural.
Ainda flertando com a filosofia, o filme é uma tentativa de responder a uma questão constante na história do pensamento humano: desde o “mundo das idéias” de Platão, até o inconsciente freudiano, busca-se entender qual seria a força responsável pela personalidade do ser humano. Em “Almas à Venda”, essa força, a alma, além de poder ser retirada de uma pessoa e “inserida” em outra, tem forma, cor e textura específicas para cada corpo, caracterizando, assim, uma crítica à perda de individualidade com o avanço da técnica.
Caminhando entre a psicológica ficção científica de Gondry e o humor existencialista de Woody Allen, “Almas à Venda” traz uma válida mensagem sobre a sociedade contemporânea. Além de, é claro, contar com a imperdível atuação de Paul Giamatti.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

O Paradoxo do Último Pedaço- parte I

Comprido e assustador. O frio cinzando-se, evaporado devagar dentro de cada respiração silenciosa na rua. E tudo exalava mudez naquele dia. As mãos trançando pés cruzando gestos pintando pensamentos sugando-se.

- É vida. É sempre vida.

Caminhara cerca quinze quadras até aquele março. Nos olhos, cansaço e fome de qualquer coisa mais parecida com nascer-crescer-morrer do que aquela apatia dilacerante em seu peito. Do que aquela coisa que mal ousava chamar de vida. Do que aquelaes segundos estúpidos congelados na película dentro de seu bolso esquerdo. Do quê, do quê precisava? Vá lá, não esbanjava suas glórias, mas também não chorava misérias. E o quê? O quê?

Gostava da rua por onde caminhava. Acreditava estar ali o essencial a uma boa tarde: cinemas, bancos em largas praças, livros, cafés e violões. Claro, flores, pequeninas, muitas, muitas flores. Mas para quem? Flores não foram feitas para serem invisíveis, disso sabia muito bem. E ali, esquecidas num canteiro qualquer de uma avenida imunda, não deveriam nem existir. Deveriam ter cheiro de fumaça, de ódio, de cores puras dissolvendo-se naquela massa cinza morta.

- E as flores foram feitas somente para a vida.

Irritava-se quando pensava nessas coisas. Perdia tempo, sentia sua vida vazando gota a gota. Verde. Atravessa, pois.

Como queria uma pinça para pegar seus pensamentos nas mãos! Como uma linha fininha e escorregadia, pegaria-o nas mãos, cuidadosamente acariciaria cada ponto sem nó. Desenhos musicados numa só nota. Enrolaria-os nas pontas dos dedos, esticaria até o limite, brincaria de tudo, tricotaria caminhos sem volta...

Quando... A fome, outra vez, a fome! A fome torcia-lhe o estômago, agarrava suas finas mãos às paredes do esôfago numa tentativa sôfrega de chegar-lhe à boca, tomando sua voz num grito de espanto:

- Fome!

Direita, final do corredor à esquerda, dois lances de escada abaixo. E uma mágica vitrine de docinhos de toda a sorte. Chocolates, cremes e nozes crocantíssimas estalando os olhos num pisca-pisca de desejo. Ah, e os morangos! Que gracinhas! Tão vermelhinhos, criancinhas encapuzadas fazendo festa na neve, rolando uns sobre os outros, um pique-esconde afirmando cor e textura macia naquele inverno tão frio. Que mimo! Que podemos dizer de mal sobre os morangos, tão redondinhos e graúdos?


- Este aqui!– apontou.
- O branco? - respondeu a atendente.
- Não, o da esquerda. Esse, esse mesmo. Um pouco maior, só mais um pouquinho... Isso, está bem, está bem.


Agradeceu, pagou, sentou, comeu. Tudinhozinho. No final daquela trilha de farelos viajantes, lá, imponente, retumbante ficou o último pedaço. Sim, o último pedaço, a última estátua imperando sobre os destroços de Gargantua e Pantagruel. Lá está ele, duas camadas de chocolate macio recheadas com creme de coco, cobertas delicadamente com brigadeiro e granulados. O último dos monumentos da vontade, o derradeiro suspiro de satisfação.

Poderia comê-lo de uma só vez, numa só mordida rápida. Quase sem mastigar. Nem sentir ou gostar. Comeria, e pronto. Mas e depois? Ainda teria fome, ainda sobraria tempo... E o tempo vazio de mais é vida de menos.


- Em vida que sobra, pensamento ruim não demora.


E era, certamente, uma pessoa que procurava se ocupar. Queria viver para inúmeros pedaços como aquele.


- Olhe aqui – disse uma voz macia, quase inaudível – aqui em baixo.


Assustou-se. Estaria louca? Não tão já, oras!

Continua.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

"15 Anos e Meio"


Quando o óbvio é bem dito
15 Anos e Meio, filme com estreia marcada para julho, se destaca menos pelo enredo do que pelas inteligentes brincadeiras audiovisuais

Philippe Le Tallec (Daniel Auteuil), famoso cientista francês, após trabalhar quinze anos nos Estados Unidos, decide voltar para a casa a pedido de sua ex-mulher, a fim de cuidar de sua filha adolescente, Églantine (Juliette Lamboley). Esse é o mote de 15 Anos e Meio, comédia com estreia marcada para o próximo mês.
A história é bastante comum, tratando de um pai que, para conseguir conviver com a turbulenta adolescência de sua filha, terá de entendê-la. Para isso, ele chega até mesmo a buscar ajuda em uma espécie de “terapia para pais”. A filha, por sua vez, enfrenta os grandes desafios de sua idade: namoros, festas, amizades e o picante blog que relata, detalhadamente, o misterioso relacionamento de Shirley, pseudônimo de uma aluna de seu colégio, com um de seus professores.
15 Anos e Meio, no entanto, se destaca menos pelas atuações e pelo enredo do que pelas pequenas brincadeiras e homenagens feitas pelos diretores, François Desagnat e Thomas Sorriaux. Uma dessas menções honrosas ocorre quando Philippe, com ciúmes de um pretendente de Églantine, imagina-se duelando com o rapaz "à moda antiga". O cenário, as roupas, as armas e a angulação da cena são uma clara referência ao antológico duelo entre as personagens Redmond Barry e Capitão Quinn, de Barry Lyndon, clássico do aclamado diretor Stanley Kubrick.
A imaginação de Phillipe, ademais, não só é responsável por algumas das cenas mais engraçadas do filme, mas também traz certa profundidade psicológica à narrativa: o cientista criou uma espécie de amigo imaginário que é ninguém menos do que Albert Einstein. As fórmulas dadas pelo pai da teoria da relatividade, embora fossem muito úteis dentro dos laboratórios, em nada ajudavam quando o problema era equacionar o relacionamento entre pai e filha. Desse modo, razão e emoção entram em conflito, mostrando que, embora Phillipe seja um cientista premiado, ele não escapa dos desentendimentos comuns aos adolescentes em seus 15 anos e meio.
Em que pesem as desavenças entre Phillipe e Églantine, os dois têm de enfrentar problemas bastante parecidos, o que acaba por aproximá-los. Ambos tentam se adequar às suas novas vidas – a filha, às hecatombes de sua adolescência e o pai, a seus novos empregos como chefe um laboratório e de uma família, em Paris.
Um dos trunfos do filme é, sem dúvidas, falar da adolescência sem ser anacrônico, isto é, com falas e situações incoerentes com tal fase da vida. Na película, são abordados temas próprios da juventude, como sexo e drogas, com uma polidez bastante adequada, sem o famigerado discurso moralista de muitos filmes juvenis.
O filme, portanto, trata do conflito de gerações sem entrar em conflito com sua própria linguagem, tanto no que diz respeito ao modo de falar das personagens, quanto no que se refere à sua estética, marcada por diálogos rápidos, digressões e situações cômicas. 15 Anos e Meio não deixa de ser uma boa pedida, uma vez que, apesar de apresentar um enredo óbvio, traz brincadeiras audiovisuais, no mínimo, inteligentes.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Descalças

"Eu não caibo mais nas roupas que eu cabia."

- Joguei fora. De uma só vez, coloquei o indefinível tudo embora. Brinquei com o que não sabia, disse o que não fazia, menti verdades inaudíveis enquanto gritava dentro de espelhos cegos, no estilhaçado conforto de reflexos picotados em que não me via.

Dito isso, sentou-se em si com as sacolas nas mãos levando causas e fins. Era uma pessoa, sobretudo, limpa, tinha nome, sobrenome e pertences. Dentro dos meandros da sanidade, maquinava inutilmente a compreensão do ponto exato em que a cólera quimicamente se separava da alegria, a gula da náusea, o revés ao invés da sorte. O sabor dos dissabores e o avesso do avanço.

Seu não-ser era ela e só, pesou muito, coisa muito insuportável, não sabia como carregar consigo aquela fenomenologia de meia tigela. Ou fosse tudo um, ou fosse cada qual para seu lado - e lá ficasse. Mas aquela fusão, não, era demais, o mundo todo não cabia em seu estômago. Ficaria com a metade, a metade estava bom.

A metade? Não, não podia. Impossível. Ficou, pois, com nada além dos limites de sua própria pele. Nua, era exagero vazio que perambulava corredores apertados, labirintos apinhados de olhos inquisidores que se revelavam num lampejo intermitente. Sufocantes espantos, críticas finas e ferozes sibiliavam-lhe aos ouvidos, chicoteando sua pele de "Disparate!", "Vergonha!", "Sem juízo!". Ensaiou cobrir-se com as mãos, pernas e olhos fechados - adiantou menos que nada. Persistiam os insultos gratuitos contra seu corpo desnudo no centro daquela maldita roda de acusadores. Desvelada, expandia-se em sentidos plenos e, assim, não podia, não podia, não podia! Não colocaria roupa alguma!

Tinha de se cobrir, tinham de colocá-la sob o manto da mentira. "Não existe mais nada dentro de ti, cubra-se já!" - chicotearam-lhe outra vez. Nunca antes se vira nudez tão suja. Foram-se os pertences, nome e rosto. Faltavam-lhe sentidos, todos eles. E ela não se renderia, as máquinas fumaçando nas ruas não levariam a barbárie à sua calçada. Simplesmente não precisava mais daquilo tudo, desviou daqueles tantos olhos e saiu da encruzilhada - pela porta da frente.

Já não existia. Era nada, era tudo. Porque, sozinha, não precisava fazer sentido para ninguém. Sentia o universo inteiro, numa garfada só, abocanhava qualquer sinestesia tateável, mastigava, engolia, se enchia. Satisfez-se. Insignificou-se.

terça-feira, 20 de abril de 2010



You can't tell me to feel! The truth never set me free, so I did it myself
You can't be too careful anymore, when all that is waiting for you won't come any closer... You've got to reach out a little more... More, more, more, more!
Open your eyes like I've opened mine: it's only the real world, life you will never know. Shifting your way to throw off the pain, well, you can ignore it. But only for so long...
-
Hayley has the ability of always taking the words out of my mouth. Maybe this is the reason I love her so damn much - always did, always will.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Post Scriptum

PS: "Badibi-dabada-diba, badibi da di-da-bida"
"La-ra-la-la-ra-la-ra"

... Tornam a música viva!

Guia prático de introdução ao Aquarismo

Ganhei um peixe! Sempre quis um peixe num aquário redondo e, quando ele chegou, foi instante de festa e de olhos reluzentes. Meu novo animal de estimação chama-se Queijo, é lindo, medroso, vermelho e vive num aquário com pedrinhas verdes. Melhor de tudo: foi presente do meu namorado em virtude do nosso primeiro ano de namoro. Lindo, não é? Tô conseguindo manter ele vivo há dois dias, um verdadeiro progresso diante das minhas experiências anteriores com peixes. Tenho de alimentá-lo de duas a três vezes por dia, trocar a água do aquário uma vez por semana... Tudo tranquilo, até agora. Ele, neste exato momento, me olha enquanto escrevo. E justamente aí que me pego a matutar: ele nada, nada, para e me olha quando chego perto dele. Depois, dá voltinhas dentro do aquário, se esconde dentro das águas... Encosta o ventre no cascalho verde, vai para cima, rodopia para baixo, percorre todo o perímetro do aquário e sobe até a borda para fazer bolhinhas. Dou comida, ele vem, come, tenta espiar o mundo de fora por dentro, faz cocô. Quando coloco o indicador próximo à borda d'água, ele parece fingir entender. Acho que até dá "tchauzinho", por vezes, com sua nadadeira. Mas não passa disso. Depois esquece, continua seu rodopio intermitente dentro de seus quatro litros de lar - repete tudo, sempre igual, o dia inteiro.
Penso eu: não se sentiria ele sozinho? Deve ser triste ser um peixe,vivendo só na melancólica vastidão de seu aquário. Hoje mesmo até perguntei à Helena, colega da faculdade, se ele era feliz assim. Ela afirmou que sim, "Betas são solitários mesmo". Na hora, concordei com ela e comigo mesma - o Queijo estava bem. No entanto, chego em casa e olho para ele, volta o pensamento todo, sempre igual, e pior: ora, não é porque ele é solitário que goste de viver sozinho! E se ele for um gauche, ou algo do gênero? E se ele, simplesmente, não souber conviver com outros peixes em seu pequeno oceano? E se esse for o motivo pelo qual alguns betas tentam constantemente fugir de seus aquários num impulso suicida?
Gosto muito do peixinho (não mais que de meu cachorro), mas fico triste por ele, por sua solidão tácita. Incomoda-me o olhar desprendido dele, sem se fixar em ponto algum. Dói-me seu movimento preso, nunca cansado de nadar. Vejo-me em seu cárcere-bolha, redondo em sua forma, infinito por dimensão.
O peixe mal dorme, eu acordo às 5h40. O peixe rodopia em seu aquário, eu vou para a faculdade. O peixe se esconde dentro da alga artificial, eu chego em casa na hora do almoço. O peixe brinca dentro dos limites de sua realidade, eu leio jornais e converso com meus amigos. O peixe estranha o pequeno toque do indicador dentro de seu mundo, eu vivo a procurar milagres. O peixe come duas ou três vezes por dia, eu também. Nós dois tentamos prender a respiração e chegar até a tênue borda da nossa realidade para, então, enxergar o que existe fora de nossa compreensão. Sempre assim, nós dois nos encaramos, fazendo "tudo sempre igual".

#nowplaying Tom Jobim - Água de Beber (no começo da postagem) e Chico Buarque - Cotidiano (no fim).
"Eu quis amar, mas tive medo
E quis salvar meu coração
Mas o amor sabe um segredo
O medo pode matar o meu coração

Água de beber
Água de beber, camará
Água de beber
Água de beber, camará"
(Tom)

"Todo dia eu só penso em poder parar
Meio-dia eu só penso em dizer não
Depois penso na vida prá levar
E me calo com a boca de feijão..."
(Chico)

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Revisitando o País das Maravilhas
Dirigida por Tim Burton, nova versão em 3D de “Alice no País das Maravilhas” estreia no país em 23 de abril e promete se tornar sucesso nas bilheterias nacionais.
Por Gabriela Sá Pessoa

“A lagarta e Alice olharam-se por algum tempo em silêncio. Por fim, a Lagarta tirou o narguilé da boca e dirigiu-se a Alice com uma voz lânguida e sonolenta. ‘Quem é você? ’, disse a Lagarta.” Se a pergunta tivesse sido feita ao filme Alice no País das Maravilhas, adaptação dirigida por Tim Burton da obra homônima de Lewis Carroll, a resposta possivelmente seria a seguinte: um filme que, além de contar com a mais moderna tecnologia em 3D, arrecadou mais de 300 milhões de dólares durante os primeiros 28 dias em cartaz nos EUA. Visualmente exuberante, Alice, cuja estreia no Brasil está marcada para 23 de abril, conta com uma forte expectativa dos fãs de Burton e de Carroll. Para Carolina Fiori Godoy, fã do diretor e estudante de Letras na Universidade de São Paulo, o que mais encanta na obra de Burton é “a questão da estética, especialmente por ele ligar tudo num mundo novo.”
Alice é a mais recente produção da Disney, que também já havia lançado, em 1951, uma versão em desenho animado do livro. Luciano Gomes Órfão, professor de História, é apaixonado pelos livros de Carroll e acredita que muito da história original foi perdida com a primeira adaptação da Disney. “Foi um projeto mais para ter cara de desenho animado do que ser fiel à Alice de Carroll.”
Ainda na década de 50, diversas adaptações da obra começaram a ser feitas para o cinema. “Todas iguais”, na opinião de Burton, em entrevista ao Fantástico (Rede Globo), “com a mesma história da menininha que cai na toca do coelho e vai parar no País das Maravilhas.” Para o diretor, seu longa se diferencia dos demais por mostrar a protagonista mais velha, com 19 anos, “esquecida do passado, que retorna ao maravilhoso mundo subterrâneo para ajudar os seres de lá a se livrar da Rainha Vermelha, que é malvada, e devolver o trono à Rainha Branca, do bem.”
Burton, a propósito, é um diretor pouco convencional, uma figura excêntrica no cinema contemporâneo. Em suas obras, ele utiliza o espaço cinematográfico para dar vida a criaturas fantásticas e a situações extraordinárias, explorando o universo do “bizarro”, do incomum. Alexandre Claudius Fernandes, professor de Literatura e Redação, acredita que “Tim Burton resgata elementos que eram usados pelo [escritor norte-americano] Edgar Allan Poe. Assim como Poe, Burton traz o grotesco para dentro da arte. Porém, ele consegue fazer um contraste entre o grotesco que existe no romantismo, feito por Edgar Allan Poe, junto ao expressionismo, dentro da arte e do processo fílmico. Essa fusão, no caso do diretor, é responsável por trazer o imaginário para dentro de sua arte. Podemos entendê-lo como uma espécie de ‘Neo-Lewis Carroll’ do cinema.” André Renato Silva, mantenedor de um blog sobre críticas de filmes (http://sombras-eletricas.blogspot.com) e professor de Língua Portuguesa, explica que “a estética expressionista no cinema traz, basicamente, a deformação irreal de objetos e a desproporção de volumes (muitas vezes representando alegoricamente a subjetividade atormentada de algum personagem), a atmosfera noturna e nevoenta (mais uma vez) e, além de tudo, o forte jogo de contrastes entre luz e sombra.”
Quando começou a estudar no California Institute of Arts, Tim Burton não gostava de trabalhar com animações. Hoje, ele é um dos mais aclamados diretores do cinema norte-americano, reconhecido, principalmente, por “Edward Mãos de Tesoura” e animações como “O Estranho Mundo de Jack” e “A Noiva Cadáver”, filmes que angariaram milhares de fãs de Burton ao redor do mundo (só no Brasil, a comunidade destinada ao diretor no Orkut conta com mais de 41.000 membros).
Tim Burton é uma figura de grande importância e de reconhecida criatividade na sétima arte, assim como o universo fantástico dos livros de Lewis Carroll que, desde a Inglaterra vitoriana, povoa o imaginário de gerações de leitores. Luciano Órfão ainda afirma que “Alice, enquanto retrato histórico, é extremamente rico.” Para o professor, o livro pode “ser colocado do lado de qualquer quadro impressionista, das obras de Freud ou da Teoria da Relatividade. É, sem dúvidas, um texto da sua época.”
Ainda que a protagonista, no livro, tenha sete anos, não se pode classificar a obra do escritor como estritamente infantil: Carroll era um professor de matemática apaixonado por enigmas numéricos, além de ter feito truques de mágica durante toda sua vida. Alice no País das Maravilhas é, desse modo, um labirinto de palavras, onde problemas de lógica se escondem atrás de expressões, personagens e trocadilhos dificilmente perceptíveis a leitores não-anglófonos.
Burton garante que Alice é um filme para todas as idades. Para Zaine Carvalho Câmara, professora de Língua Portuguesa, o fato de Alice ser retratada aos 19 anos no filme faz com que tanto o público jovem, quanto o infantil, se identifique com a personagem. “Seja pelos conflitos inerentes ao amadurecimento, seja pelo desejo que as crianças, hoje, têm de quererem ser adultas”, afirma a professora.
O diretor, além disso, diz não ter feito “nada mais estranho ou monstruoso do que tem na história original.” Na verdade, poucos diretores poderiam conduzir visualmente os espectadores a uma nova viagem ao maravilhoso mundo de Carroll como Tim Burton. André Renato, por sua vez, não consegue “pensar em um diretor de Hollywood mais criativo e ‘bizarro’ do que ele para encarar a tarefa - talvez Guillermo Del Toro.” Não somente por sua obra se assemelhar, de certa forma, à de Carroll (quem poderia filmar um chá de “desaniversário” melhor do que o homem responsável por explorar o universo dos mitos em “O Estranho Mundo de Jack”?), mas também por suas famosas parcerias com Johnny Depp e Helena Bonham Carter que, respectivamente, interpretam o Chapeleiro Maluco e a Rainha de Copas.
Silva ainda acredita que “Johnny Depp é um ator ‘especializado’ em personagens párias, bizarras, românticas, etc., mesmo em filmes que não são de Burton.” O ator, em seu sétimo trabalho com o diretor, é um dos grandes destaques do filme. Por se tratar de uma livre-adaptação, o Chapeleiro ganhou mais evidência na história, aumentando, assim, a responsabilidade de sua interpretação na condução da narrativa. Depp afirma, também em entrevista ao Fantástico, ter achado “o ponto ideal” em sua composição, “resultado de muito estudo e de muita pesquisa sobre o personagem.” Já Helena Bonham Carter, esposa de Burton, dá vida à Rainha Vermelha, grande vilã do filme. A construção da personagem foi resultado da fusão entre as rainhas Vermelha e de Copas, também vilãs nos livros de Carroll.
O filme promete, além das grandes interpretações e da magistral direção de Tim Burton, um espetáculo de efeitos visuais. Ele também será exibido na versão 3D em algumas salas o que, para alguns, tornará ainda mais reais as experiências dos espectadores em sua incursão no “País das Maravilhas”. Para André Renato, o 3D é “uma experiência interessante, que pode ‘dar um gás’ na nossa percepção, mas sem alterá-la na sua essência.”
De qualquer forma, em 3D ou em 2D, a expectativa para a estreia de Alice é tamanha que, em alguns cinemas, muitas sessões já estão lotadas, não só para o dia 23 de abril, mas também por até uma semana depois da data do lançamento. Só nos resta esperar mais alguns dias até podermos descer pela “toca do coelho branco” e conferir as maravilhas criadas por Burton.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Incomunicação nos tempos de Steve Jobs


Bons tempos, aqueles dos sinais de fogo. Só bastavam um pouco de madeira seca, faísca e sopro: lá se acendia a tocha que iluminaria os caminhos da comunicação. Naquela época, não precisávamos viver longe de nossos afetos, talvez bem existisse saudade no meio da verdadeira solidão.
Bons tempos. Sem emprego, pátria ou patrão. Sem as ofuscantes luzes da cidade para esconder a verdade do universo guardada dentro do lampejo de cada estrela.
Bons tempos, enterrados sob concreto arnadi e asfalto, pisados por automóveis, passeatas e tratores. É. O mundo cresceu e a saudade também. A solidão encolheu tanto que, para não sumir, fincou firme o pé em cada peito - paradoxal e irremediavelmente. Daí nos sentirmos completamente sós num edifício com duas mil outras pessas - sentimos falta de nós mesmos.
Tentamos, pois, preencher esse hiato com toda a soete de inventozinhos. Criamos necessidades. Primeiro, foi a casa para chamar de própria. Depois, as roupas para fazerem moda. Então, vieram o trabalho, a palavra, o jornal e, bem depois (e nem por isso menos frustrante), a operadora de telefone celular.
Esta última, nos oferece a vida sem fronteiras e a saudade em escala menor. Compramos chips na esperança de que bossa vida simplesmente seja mas viva, de que pulemos mais, de que nosso "eu te amo" seha ouvido de perto, feito sussuro, mesmo vindo de longe. Claro. Em vez disso, levamos tarifas impagáveis e o sinal da empresa que não funciona. Simples assim, nossa comunicação depende de outrem. E o pior: vimos isso acontecer.
No jornal, li uma notícia sobre um homem. Como tantas, uma pequena nota no canto da página, perdida no meio de tanto fato, mapa e cor. Enfim: ele era paulistano e engenheiro civil. Para completar sua vida, nada melhor que um novo celular, comprado graças às convidativas vantagens de certa operadora. Durante vinte e cinco dias, o celular do digníssimo cidadão ficou mudo, isto é, inútil. Pois de nada adiantam mil funções em um celular se ele não serve para sua função mais básica: ouvir uma voz e respondê-la.
Devido a essa falha, o engenheiro tornou-se praticamente incomunicável. Perdeu até um emprego que triplicaria seu salário. Sinais de fogo, cartas, telegramas - nada adianta se o maldito aparelhinho de algumas polegadas resolve não funcionar e se a boa vontade da operadora não colaborar.
Bandeira branca. Fomos vencidos pelo monstro da incomunicação que, disfarçado dentro dos mais diversos gadgets, nos engana, pois acreditamos que estamos com o mundo cada vez mais na palma da mão. Pobre de nós, tão bobos, jogamos fora nossa própria voz. E não há Steve Jobs, com seus aparelhos mágicos, que possa nos ajudar.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Voamos

Tarzan foi o filme favorito da minha infância.

A busca do saber
Vai mostrar a direção
Mas sempre ouvindo a voz do coração
(...)
Só você vai encontrar liberdade "prá" viver
E um dia então será
Como um grande homem deve ser.
Ed Motta - Trilha sonora de Tarzan



E não há quem não o diga: o tempo não passa, voa. Vai longe, vento dentro da nuvem, leva consigo as virtudes, a fantasia e tudo o mais que fomos.
Ontem foi a Páscoa e devo dizer: cresci. Não porque me tornei mulher-feita, racional, experiente, dona de mim. Mas porque eu estou deixando de sentir. Ainda amo, pois viva ainda estou. Tenho saudades, esperneio, me rasgo em lágrimas, sou risos e carícias mil. A situação é a seguinte: as coisas estão, simplesmente, perdendo seus significados. Sinto ser consumida pela apatia, pelo olhar morno, blasé, para a paisagem presa à inexorável realidade da janela. E não pode, não deve ser assim!
Ora, quando criança, nada mais gostoso do que esperar pelas datas comemorativas. Cronologicamente, "dia de ano", Carnaval, Páscoa, dia do índio (que nem feriado oficial é), Tiradentes, dia das mães e dos pais, Quermesse, dia da criança e, claro, aniversário e natal. Tudo preparava-se com requinte único: dobraduras, pinturas, máscaras e comidinhas - fragmentos de infância que vão embora junto com os sapatos que não servem mais. Triste. É assim que a gente morre, aos pouquinhos, com as pequenas coisas de que nos desfazemos por não nos servirem mais. No fim, nem mesmos nosso corpo servirá à nossa alma. Tornamo-nos, então, um punhado de pó, um pedaço da terra deste mundo.

Eu mal cabia em meu metro de altura e já dizia: ovos de Páscoa só podem se abrem no domingo. Tinha coisa melhor do que ver tamanho estoque de chocolates crescendo, dia a dia, em cima do armário da cozinha? Quando a gente é pequeno, tem mania de guardar o melhor sempre pro final: primeiro o arroz e o feijão, depois a mistura. Tortuguita se come metodicamente: patas, cabeça e casca; Yakult se bebe fazendo um furinho no fundo, bem devagarzinho, transformando um gole em três ou quatro. Enrolar os brigadeiros do aniversário, então, era quase um ritual, um exercício de autocontrole da gula. Já na infância, aprendemos que momentos bons são poucos (e preciosos), por isso devem ser cuidados até o fim, vividos ao máximo - até a última gota.
Deixar de se empolgar com a Páscoa é uma tragédia imensa, talvez uma das piores que possa se abater sobre um ser humano. Assim, começamos a morrer, quando abandonamos significados que cresceram conosco, quando o cheiro das comidas só nos lembra fome (e não vontade). Jogamos ao ar nossas memórias, deixamos de ser quem somos. Tropeçamos em nossas rugas, deitamos ao vento para voar sozinhos eternamente.
Sorte que ainda deve haver um certo tempo...

sexta-feira, 26 de março de 2010

Terror Psicológico

Todo filme possui uma cena inesquecível, que se aviva imediatamente em nossa memória quando a ele nos referimos . Em “A Ilha do Medo”, dirigido por Martin Scorsese, tal cena nos é mostrada logo no início do longa: um barco surge, subitamente, dentro de uma espessa cortina de névoa, velando qualquer indício da origem da embarcação, como se ela não tivesse mais para onde voltar e as personagens já estivessem presas a seu destino - a ilha Shutter.
Esse sentimento de prisão, constante em todo o filme, começa a ser delineado quando nos é apresentado Teddy Daniels (Leonardo DiCaprio) que, tendo enjoos em um banheiro, olha pela janela e se vê completamente cercado por água, uma perfeita imagem de seu total isolamento do mundo em que costumava viver antes de partir.
Daniels, ex-combatente da II Guerra Mundial, é um agente da polícia federal norte-americana e, acompanhado de seu parceiro, Chuck Aule (Mark Ruffalo), é escalado para investigar o misterioso desaparecimento de Rachel Solando (Emily Mortimer), uma paciente do hospital psiquiátrico localizado na ilha, local para onde são levados criminosos com distúrbios psíquicos.
Logo ao chegar à ilha, Teddy Daniels percebe que há algo errado. Olhares ensaiados, depoimentos visivelmente forjados, a impossibilidade de o detetive acessar os arquivos do hospital. A esses mistérios, soma-se o bilhete encontrado pelos detetives durante uma visita ao quarto de Solando, acusada de afogar seus quatro filhos: “O mistério dos 4. Quem é o 67?”, sugerindo a existência (negada veementemente pelos diretores da instituição) de um 67º paciente na ilha.
Daniels, então, começa a ter alucinações. Sua mulher, morta em um incêndio criminoso, aparece em seus sonhos, dando conselhos duvidosos e, por vezes, tentando afastá-lo do rumo das investigações. Aos poucos, o detetive se afasta cada vez mais da realidade – fantasmas rondam suas noites, lembranças da Guerra tomam seu pensamento e fortes enxaquecas tiram-no o controle de sua razão.
Ainda que contrariado por Chuck, Teddy começa a suspeitar que assombrosos experimentos, semelhantes àqueles praticados em campos de concentração nazistas, sejam realizados com alguns pacientes da ilha. Tal acontecimento dá uma nova direção às ações do detetive. Assumindo esse viés, a história também aborda (ainda que sucintamente) a paranoia vivida durante a Guerra Fria, propondo a seguinte reflexão: seria o contínuo terror vivido além dos limites da ilha mais irracional do que a insanidade dos habitantes do hospital psiquiátrico? Em determinado momento da narrativa, um dos pacientes chega, inclusive, a afirmar ser melhor viver internado com segurança do que em um mundo onde se vive sob a ameaça “bombas H”, uma clara referência ao “Equilíbrio do Terror” entre EUA e URSS durante a Guerra Fria.
O filme esconde grandes mistérios revelados cena a cena, desafiando nossas próprias concepções sobre loucura e realidade. “A Ilha do Medo”, para alguns críticos, é “O Iluminado” de Scorsese. Um comentário bastante verdadeiro, posto que, guardadas as devidas diferenças, ambos exploram os cantos mais sombrios da mente ensandecida, conduzindo os espectadores aos mais surpreendentes meandros das alucinações. Nesse ponto, se estabelece um grande enigma: até que ponto a vida de Daniels (e de todos os habitantes da ilha) é verdadeira, isto é, até que ponto devemos confiar no que nossa mente nos diz?
Scorsese constrói seu filme com uma certa dose de expressionismo: a mente ensandecida é uma ilha, um universo totalmente apartado do que se considera real. O medo, por sua vez, atinge a razão tal qual um devastador furacão, cuja ação é, segundo o filme, corroer e apodrecer a mente.

quinta-feira, 18 de março de 2010

Preciso desabafar:

Eu choro toda vez que escuto "Vilarejo", da Marisa Monte. Se não chego ao ponto do pranto, me comovo muitíssimo! Ah, que música mais lindinha!

"Pra acalmar o coração/Lá o mundo tem razão/Terra de heróis, lares de mãe/Paraíso se mudou para lá(...)/Toda gente cabe lá/Palestina, Shangri-lá/Vem andar e voa/Vem andar e voa/Vem andar e voa"

decifrandonuvens


Duas, três... e quinze. Vazio azul, clara mente escura e só: tudo era um ambiente todo meu, todo livre - em branco. Pincéis de pensamento e cores mil.
O vendedor de balões buzina "olha, menina" e logo mais, trôpego, cochila em pé, um poste torto. E lá se vão bolas e mais bolas pelo ar. Rédeas frouxas, sem razão, se soltam, se jogam, se voam.
Meus, ainda? Longe, longe... para lá, logo atrás das nuvens. Dentro de gotinhas de vapor que se moldam, tomam forma de quem? Ninguém. Pairando sozinhas, equilinearmente, logo se desmancham e tornam-se nada de novo. E de novo, já não têm dono. Nuvem lá, nuvem pra mim.

Eita, pensamentozinho besta!

segunda-feira, 8 de março de 2010

Minhas expectativas em relação ao Oscar foram, felizmente, atendidas. Em nenhum momento quis ver Avatar (2009, EUA/Reino Unido) pois, sinceramente, narrativas desse gênero não me atraem, ainda mais quando se valem de super efeitos especiais. Gosto do Cinema real, de filmes que tratam de pessoas e de suas vidas, sejam elas marcadas por dramas, romances baratos, guerras ou segregação social. Não que todas as histórias tenham de se restringir ao limite da realidade "crua" (vide meu fascínio por 2001: Uma Odisseia no Espaço - que dispensa comentários -,além disso, gosto muito de Gattaca e sou fã inveterada de Harry Potter), pois é a própria fugacidade que nos transporta para além da frustração . Porém, eu gosto da catarse, de quando um filme torna-se obra de arte, de ver bons enredos contados por meio de uma bela fotografia, e não de lindíssimas sequências de imagens sem narrativa alguma (como ouvi ser o caso de Avatar).

Somente o fato de não ter visto Avatar não explica a realização dos meus anseios. Minha satisfação deve-se ao grande vencedor da noite de ontem: Guerra ao Terror (The Hurt Locker, 2008, EUA), filme brilhante e realmente merecedor dos prêmios da Academia. O longa, dirigido por Kathryn Bigelow (primeira mulher vencedora do Oscar de melhor direção), trata dos últimos dias de um esquadrão anti-bomba no Iraque, narrando as vicissitudes da rotina militar sem fazer um discurso explicitamente favorável ou contrário ao conflito (embora o próprio relato "imparcial" dos acontecimentos seja, por si só, uma crítica velada aos excessos beligerantes dos EUA). Seja pela escolha de câmeras, as quais parecem ser portadas por alguém posicionado dentro do próprio filme; seja pela ausência da altissonante (e incoerente) trilha sonora tradicionalmente usada em filmes de guerra ou seja pela narrativa humanizada do conflito (vale destacar o difícil relacionamento entre os personagens Sanborn, vivido por Anthony Mackie, e James, interpretado por Jeremy Renner), Bigelow conduziu um filme que, como poucos, foi capaz de aproximar, dentro do possível, os espectadores do que é verdadeiramente viver em uma guerra.
Enfim, meu objetivo não é fazer uma crítica sobre Guerra ao Terror, mas sim registrar meus sinceros parabéns à escolha da Academia, a qual pareceu pautar suas escolhas não pelo sucesso comercial de um filme, mas pela maestria que torna o Cinema capaz de, brilhantemente, representar parte do que é o ser humano. Não posso me esquecer, ademais, do merecidamente melhor ator coadjuvante - ainda que, para mim, ele tenha sido o protagonista de Bastardos Inglórios (Inglourious Basterds, 2009, EUA/Alemanha) - deste ano: Christoph Waltz. Dono de genial interpretação, o austríaco deu vida ao coronel nazista Hans Landa, grande vilão do filme de Tarantino, que impressiona não só pela sua fria crueldade, mas pelo seu excelso domínio de idiomas. Landa transita pelo Inglês, Alemão, Francês e Italiano com uma naturalidade estonteante. Faz quatro meses que assisti a Bastardos e posso dizer que, em todo esse tempo, meus maiores elogios em relação ao filme foram destinados, indubitavelmente, à interpretação de Waltz.
Quanto a Avatar? Bem, posso ter perdido um inesquecível espetáculo tecnológico, mas posso dizer que, até agora, o dinheiro economizado foi muito bem gasto na sessão de Guerra ao Terror, obrigada. Quem sabe eu assista ao filme de James Cameron, porém, isso só acontecerá quando eu sentir vontade de fazê-lo (ainda que sem a projeção em 3D). Por enquanto, fico satisfeita ao ver um grande filme e um brilhante ator serem agraciados com o mais prestigiado prêmio da sétima arte.












segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Muros: cicatrizes expostas

O muro talvez seja um dos mais antigos sistemas de defesa da humanidade. Provavelmente, essa barreira tenha sido uma necessidadade decorrente do surgimento da noção propriedade: a disponibilidade de terras agricultáveis, com o passar dos anos, tornou-se cada vez mais escassa com o crescimento das populações, acirrando a disputa entre os diferentes grupos humanos que, sem a presença do Estado ou de um sólido código de leis capaz de domar o leviatã da discórdia, recorreram à velha e, quase sempre, infalível "lei do mais forte". Desse modo, uma estrutura concreta tornou-se indispensável à proteção de um determinado grupo social, permitindo, assim, que tivessem um maior tempo para a organização das estratégias de ataque e defesa.

Suposições históricas à parte, a associação mais fiel à palavra "muro", no sentido figurado é, segundo o dicionário Michaelis de Sinônimos e Antônimos, "defesa, proteção, abrigo". Incluem-se nesse rol os muros que protegiam os feudos e, posteriormente, aqueles construídos a fim de guardar as riquezas das primeiras cidades do mundo. Também não podem ser esquecidas as paredes que protegem os cada vez mais numerosos condomínios residenciais - fortalezas que impõem sobre a calamidade urbana a falsa noção de segurança vivida pelos mais privilegiados.

É praticamente impossível, ademais, deixar de pensar no muro como uma forma de segregação entre os próprios homens. Foi com esse propósito que se construiu a Muralha da China: por volta do século III a.C., a dinastia Zhou decidiu dividir a Terra em duas partes, construindo, para tanto, a maior das sete maravilhas do mundo medieval. Outros famosos muros, como o de Berlim e o da Cisjordânia, por exemplo, cumprem essa mesma função: isolar e segregar culturas e sociedades diferentes, sendo, pois, um símbolo máximo da intolerância humana e da incapacidade de se conviver com o próximo segundo a tão elementar "lei de ouro", cujo princípio é não fazer aos outros aquilo que não gostaríamos que fizessem a nós.
Vejo toda essa intolerância e segregação construindo enormes muros dentro de nós mesmos, fortificações compostas por tijolos de medo e cuja argamassa não é outra se não a ausência de humanidade. Cada olhar mais duradouro é suspeito, não se conversa mais nos ônibus, não se conhece mais a história do senhor fazendo cruzadas no banco da praça. Do que tanto nos protegemos? Que desgraça tanto tememos?
Subimos cada vez mais alto em torres de solidão, isolando-nos completamente do mundo em que vivemos: só o experimentamos por meio da realidade editada pelas telas de cristal líquido, LED, Plasma, enfim, prisões do nosso tempo, anestesias para o nosso desespero.
Um dos diretores , acho (não me lembro exatamente o cargo), de justamente uma das principais empresas desse tecnológico ramo de televisões e aparelhos ultra-modernos declarou recentemente que se o Piauí deixasse de existir, ninguém notaria a diferença. Tal informação me chocou profundamente, não só porque tenho familiares naquele estado, mas também pela frieza de tão desumano comentário, especialmente por partir de uma empresa "centrada em atender as necessidades das pessoas", segundo consta no próprio site da companhia. Está aí o que chamaria de contradição, não é mesmo? Do alto de sua cadeira de consagrado executivo, uma pessoa como outra qualquer julga-se melhor que as demais, ignorando milhares de vidas, as quais, provavelmente, consomem televisões e aparelhos de som dessa multinacional, pagando, indiretamente, o salário desse diretor que simplesmente não atribui o mínimo valor à existência dos cidadãos piauienses.
Claro, qual importância tem o sonho de um jovem que trabalha exaustivamente algumas horas a mais que esse executivo para ter condições de pagar suas contas em dia no fim do mês? Qual o valor do beijo de bom dia dado pela mãe lituana em seu filho antes de ele ir para o colégio? Seja da Índia, na Albânia, no Acre, na Suíça, enfim, em qualquer canto do mundo, uma demonstração de humanidade, a menor delas, vale infinitamente mais do que todo o patrimônio tão bem guardado pelos muros da indiferença desse executivo.
Não quero ser hipócrita ao apontar o dedo para tal demonstração de preconceito: como todos, também julgo o próximo erroneamente, também tenho medo, também olho para o mundo com desdém. Entretanto, é preciso descer de cima do muro: destruí-lo é um trabalho árduo, uma luta diária, quase que um modo de vida, eu diria.
Fica, portanto, para todos nós, o grito desesperado do filme The Wall (1982, dirigido por Alan Parker): "Bring down the wall!" (Derrube o muro!). Que não mais apartemos o próximo do nosso convívio, afinal, somos todos feitos da mesma matéria - carbono, oxigênio, nitrogênio etc - pedaços de um só universo.
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Fica a dica deste vídeo, bem legal e esclarecedor:
"Story of Stuff ( "A História das Coisas")
Recomendo também um dos melhores trechos do The Wall (claro, recomendo o filme inteiro):
"Pink Floyd The Wall - Pink Floyd - Comfortably Numb"

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

"Seja você quem for, seja o que Deus quiser"(Chico Buarque)



Que o tempo trata de destruir as certezas, ouço desde tempos imemoriais. Só não precisava soprar para longe o que sobrou de mim no meio de tanta balbúrdia, de tanta palavra distorcida e informação descabida - um inebriante mundo para quem, muito provavelmente, eu nada signifique além de um amontoado de átomos que servirão para compor outro ser vivo deste planeta.
E por quanto tempo eu hei de permanecer girando como um cavalo imóvel neste carrossel cada vez mais veloz? Sim: porque me vejo sempre a mesma cara e com igual função, existindo apenas para perder paulatinamente a tinta com a qual me pintaram sem nem ao menos eu ter escolhido se era verde ou azul. Embelezaram-me, usaram-me e no fim, se paro durante alguns momentos, logo vejo o quão incompreensível (e estranhamente lógico) é estar aqui.
Chamem de pessimismo, eu digo: realidade.







"O espelho e os sonhos são coisas semelhantes, é como a imagem do homem diante de si próprio" José Saramago em O Evangelho Segundo Jesus Cristo.

Quando eu ri (21/03/09)

"Na minha cabeça existe uma estação cinzenta, de onde mando meus pensamentos para lugares distantes... Então, eles terão uma chance de encontrar um lugar onde se encaixem melhor do que aqui." (Soul meets body)

Esses dias ouvi falar sobre a redução ao absurdo. Isso nada mais é do que incluir o vazio em tudo, pois se não há nada no vazio, dizer que ele não faz parte de alguma substância é dizer que há algo em tal matéria que ao vazio não se assemelha e, sendo o vazio a ausência de qualquer elemento, dizer que ele não está em um conjunto é dizer que existem elementos no vazio, um absurdo!

Nesse mesmo dia eu ouvi dizer que nós estamos contidos em nós mesmos. Matematicamente, fisicamente, biologicamente, academicamente plausível. E daí? Onde foi que me perdi?
Se alguém algum dia (o que sinceramente acredito que sim) já desfez-se de coisas velhas, vai entender quão estranho é, chega a ser desconfortável, entrar em contato com coisas que não mais lhe agradam. Foi o que aconteceu, também por esses dias.
Tais pertences me tomaram pela mão e me deixaram só em algum lugar impalpável, conscientemente meu e, por isso, degustável. Então, perguntei-me num canto, procurei-me em outro... nem uma sombra, um traço, um ruído sequer. Por fim, senti a minha impotência, nem ao menos pertencia à paisagem. Nesse momento meus lábios se expandiram e eu, aquém das coisas ao redor, fiz-me semente, cada vez mais vertiginosamente, rapidez que revolveu-me as vísceras - passei de luneta a microscópio.
O Kundera diz que a gente nunca vive de fato e, nesse ponto (como em muitos outros), eu tenho de concordar com ele. A gente ensaia para um momento que nunca vem, a vida passa, enredo linar de um filme, sem clímax, sem plateia, sem trilha sonora, sem estética. Ela flui, como um rio que tem origem em nossos peitos, e nos conduz a um destino duvidoso e corre sempre pela mesma paisagem, eu vou pelo mesmo caminho, sigo por uma partitura com as mesmas notas infinitamente. "Es muβ sein!" Só há vida por conta dos peixes que todos os dias nascem, reproduzem-se e morrem.
Quando voltei, vi um frasco de perfume vazio, feito de vidro verde. Sua fragrância preencheu-me os sentidos, já suave e quase imperceptível, a última tentativa dos braços do homem que se afoga de alcançar a margem do rio. Não conseguiu, ele ficou para trás, ele viveu e segue atrás de mim, não muito, depois de qualquer chuva mais forte ele talvez volte ao seu lugar na correnteza. Lugar que agora está vazio, o vazio contido no rio, que aguarda pelo único recipiente de vidro verde capaz de, absurdamente, preenchê-lo.





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Como pretendo deletar o outro blog, vou postar os textos de que mais gosto aqui.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Berkeley

Foi um segundo que caiu nas minhas mãos, o responsável pela convulsão de pensamentos. De fato, ideias assim brotam na menor fração de tempo possível e duram a incomensurável eternidade. Claro, uma epifania! Mas, não, nada me foi revelado, portanto, afirmo: tudo se resumiu a uma ingênua constatação.
Não sou mais do que parte do mundo e também o mundo não passa de uma parte de mim. Talvez todos os universos sejam sonhos, grandes e pequenos, que guardam recortes de supostas realidades vividas por outrem, guiadas pouco pela razão e em grande parte pelas experiências dos sentidos. Ou pela falta deles.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Malabares

Há quem diga: visão nublada não passa de miopia. Ou não. Visão nublada pode ser tanta coisa, como a neblina à beira do abismo, a vertigem flutuando ao redor da cabeça ou olhar para o mundo através de um copo d'água.
Sabe Deus porque não enxergo bem as coisas, talvez seja a combinação entre a falta de visibilidade, própria dos abismos, com a qual me deparo ao andar vertiginosamente pela milimetricamente indefinível linha que divide as metades vazia e cheia do copo d'água. Nem uma gota a mais, nem uma gota a menos. O limite.
Engana-se quem acredita ser confortável o (suposto) equilíbrio das coisas, já que esse estado não passa de uma tremenda indefinição. O meio não é lá nem cá e, de cima do muro, tudo é visto de longe,ao contrário. A equidistância é o menor lugar dentre todos os caminhos.
Querer cair não é, exatamente, desejar extinguir-se. É apenas se arremessar e a algum dos polos que tanto segmentam a existência, desfalecer para só então descobrir o que está do outro lado de si, a verdade que os olhos escondem, eternamente imóveis, do outro lado do espelho.
Em algum instante o malabarista há de suspirar de cansaço e falhar em sua missão: os sentimentos se espalharão como pequenas bolas de borracha pelo picadeiro, seguindo, livres, para onde tanto sonham, para um lugar onde não mais tenham de flutuar no ar como fossem estrelas tontas. Tudo há de explodir, enfim.