segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Muros: cicatrizes expostas

O muro talvez seja um dos mais antigos sistemas de defesa da humanidade. Provavelmente, essa barreira tenha sido uma necessidadade decorrente do surgimento da noção propriedade: a disponibilidade de terras agricultáveis, com o passar dos anos, tornou-se cada vez mais escassa com o crescimento das populações, acirrando a disputa entre os diferentes grupos humanos que, sem a presença do Estado ou de um sólido código de leis capaz de domar o leviatã da discórdia, recorreram à velha e, quase sempre, infalível "lei do mais forte". Desse modo, uma estrutura concreta tornou-se indispensável à proteção de um determinado grupo social, permitindo, assim, que tivessem um maior tempo para a organização das estratégias de ataque e defesa.

Suposições históricas à parte, a associação mais fiel à palavra "muro", no sentido figurado é, segundo o dicionário Michaelis de Sinônimos e Antônimos, "defesa, proteção, abrigo". Incluem-se nesse rol os muros que protegiam os feudos e, posteriormente, aqueles construídos a fim de guardar as riquezas das primeiras cidades do mundo. Também não podem ser esquecidas as paredes que protegem os cada vez mais numerosos condomínios residenciais - fortalezas que impõem sobre a calamidade urbana a falsa noção de segurança vivida pelos mais privilegiados.

É praticamente impossível, ademais, deixar de pensar no muro como uma forma de segregação entre os próprios homens. Foi com esse propósito que se construiu a Muralha da China: por volta do século III a.C., a dinastia Zhou decidiu dividir a Terra em duas partes, construindo, para tanto, a maior das sete maravilhas do mundo medieval. Outros famosos muros, como o de Berlim e o da Cisjordânia, por exemplo, cumprem essa mesma função: isolar e segregar culturas e sociedades diferentes, sendo, pois, um símbolo máximo da intolerância humana e da incapacidade de se conviver com o próximo segundo a tão elementar "lei de ouro", cujo princípio é não fazer aos outros aquilo que não gostaríamos que fizessem a nós.
Vejo toda essa intolerância e segregação construindo enormes muros dentro de nós mesmos, fortificações compostas por tijolos de medo e cuja argamassa não é outra se não a ausência de humanidade. Cada olhar mais duradouro é suspeito, não se conversa mais nos ônibus, não se conhece mais a história do senhor fazendo cruzadas no banco da praça. Do que tanto nos protegemos? Que desgraça tanto tememos?
Subimos cada vez mais alto em torres de solidão, isolando-nos completamente do mundo em que vivemos: só o experimentamos por meio da realidade editada pelas telas de cristal líquido, LED, Plasma, enfim, prisões do nosso tempo, anestesias para o nosso desespero.
Um dos diretores , acho (não me lembro exatamente o cargo), de justamente uma das principais empresas desse tecnológico ramo de televisões e aparelhos ultra-modernos declarou recentemente que se o Piauí deixasse de existir, ninguém notaria a diferença. Tal informação me chocou profundamente, não só porque tenho familiares naquele estado, mas também pela frieza de tão desumano comentário, especialmente por partir de uma empresa "centrada em atender as necessidades das pessoas", segundo consta no próprio site da companhia. Está aí o que chamaria de contradição, não é mesmo? Do alto de sua cadeira de consagrado executivo, uma pessoa como outra qualquer julga-se melhor que as demais, ignorando milhares de vidas, as quais, provavelmente, consomem televisões e aparelhos de som dessa multinacional, pagando, indiretamente, o salário desse diretor que simplesmente não atribui o mínimo valor à existência dos cidadãos piauienses.
Claro, qual importância tem o sonho de um jovem que trabalha exaustivamente algumas horas a mais que esse executivo para ter condições de pagar suas contas em dia no fim do mês? Qual o valor do beijo de bom dia dado pela mãe lituana em seu filho antes de ele ir para o colégio? Seja da Índia, na Albânia, no Acre, na Suíça, enfim, em qualquer canto do mundo, uma demonstração de humanidade, a menor delas, vale infinitamente mais do que todo o patrimônio tão bem guardado pelos muros da indiferença desse executivo.
Não quero ser hipócrita ao apontar o dedo para tal demonstração de preconceito: como todos, também julgo o próximo erroneamente, também tenho medo, também olho para o mundo com desdém. Entretanto, é preciso descer de cima do muro: destruí-lo é um trabalho árduo, uma luta diária, quase que um modo de vida, eu diria.
Fica, portanto, para todos nós, o grito desesperado do filme The Wall (1982, dirigido por Alan Parker): "Bring down the wall!" (Derrube o muro!). Que não mais apartemos o próximo do nosso convívio, afinal, somos todos feitos da mesma matéria - carbono, oxigênio, nitrogênio etc - pedaços de um só universo.
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Fica a dica deste vídeo, bem legal e esclarecedor:
"Story of Stuff ( "A História das Coisas")
Recomendo também um dos melhores trechos do The Wall (claro, recomendo o filme inteiro):
"Pink Floyd The Wall - Pink Floyd - Comfortably Numb"

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

"Seja você quem for, seja o que Deus quiser"(Chico Buarque)



Que o tempo trata de destruir as certezas, ouço desde tempos imemoriais. Só não precisava soprar para longe o que sobrou de mim no meio de tanta balbúrdia, de tanta palavra distorcida e informação descabida - um inebriante mundo para quem, muito provavelmente, eu nada signifique além de um amontoado de átomos que servirão para compor outro ser vivo deste planeta.
E por quanto tempo eu hei de permanecer girando como um cavalo imóvel neste carrossel cada vez mais veloz? Sim: porque me vejo sempre a mesma cara e com igual função, existindo apenas para perder paulatinamente a tinta com a qual me pintaram sem nem ao menos eu ter escolhido se era verde ou azul. Embelezaram-me, usaram-me e no fim, se paro durante alguns momentos, logo vejo o quão incompreensível (e estranhamente lógico) é estar aqui.
Chamem de pessimismo, eu digo: realidade.







"O espelho e os sonhos são coisas semelhantes, é como a imagem do homem diante de si próprio" José Saramago em O Evangelho Segundo Jesus Cristo.

Quando eu ri (21/03/09)

"Na minha cabeça existe uma estação cinzenta, de onde mando meus pensamentos para lugares distantes... Então, eles terão uma chance de encontrar um lugar onde se encaixem melhor do que aqui." (Soul meets body)

Esses dias ouvi falar sobre a redução ao absurdo. Isso nada mais é do que incluir o vazio em tudo, pois se não há nada no vazio, dizer que ele não faz parte de alguma substância é dizer que há algo em tal matéria que ao vazio não se assemelha e, sendo o vazio a ausência de qualquer elemento, dizer que ele não está em um conjunto é dizer que existem elementos no vazio, um absurdo!

Nesse mesmo dia eu ouvi dizer que nós estamos contidos em nós mesmos. Matematicamente, fisicamente, biologicamente, academicamente plausível. E daí? Onde foi que me perdi?
Se alguém algum dia (o que sinceramente acredito que sim) já desfez-se de coisas velhas, vai entender quão estranho é, chega a ser desconfortável, entrar em contato com coisas que não mais lhe agradam. Foi o que aconteceu, também por esses dias.
Tais pertences me tomaram pela mão e me deixaram só em algum lugar impalpável, conscientemente meu e, por isso, degustável. Então, perguntei-me num canto, procurei-me em outro... nem uma sombra, um traço, um ruído sequer. Por fim, senti a minha impotência, nem ao menos pertencia à paisagem. Nesse momento meus lábios se expandiram e eu, aquém das coisas ao redor, fiz-me semente, cada vez mais vertiginosamente, rapidez que revolveu-me as vísceras - passei de luneta a microscópio.
O Kundera diz que a gente nunca vive de fato e, nesse ponto (como em muitos outros), eu tenho de concordar com ele. A gente ensaia para um momento que nunca vem, a vida passa, enredo linar de um filme, sem clímax, sem plateia, sem trilha sonora, sem estética. Ela flui, como um rio que tem origem em nossos peitos, e nos conduz a um destino duvidoso e corre sempre pela mesma paisagem, eu vou pelo mesmo caminho, sigo por uma partitura com as mesmas notas infinitamente. "Es muβ sein!" Só há vida por conta dos peixes que todos os dias nascem, reproduzem-se e morrem.
Quando voltei, vi um frasco de perfume vazio, feito de vidro verde. Sua fragrância preencheu-me os sentidos, já suave e quase imperceptível, a última tentativa dos braços do homem que se afoga de alcançar a margem do rio. Não conseguiu, ele ficou para trás, ele viveu e segue atrás de mim, não muito, depois de qualquer chuva mais forte ele talvez volte ao seu lugar na correnteza. Lugar que agora está vazio, o vazio contido no rio, que aguarda pelo único recipiente de vidro verde capaz de, absurdamente, preenchê-lo.





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Como pretendo deletar o outro blog, vou postar os textos de que mais gosto aqui.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Berkeley

Foi um segundo que caiu nas minhas mãos, o responsável pela convulsão de pensamentos. De fato, ideias assim brotam na menor fração de tempo possível e duram a incomensurável eternidade. Claro, uma epifania! Mas, não, nada me foi revelado, portanto, afirmo: tudo se resumiu a uma ingênua constatação.
Não sou mais do que parte do mundo e também o mundo não passa de uma parte de mim. Talvez todos os universos sejam sonhos, grandes e pequenos, que guardam recortes de supostas realidades vividas por outrem, guiadas pouco pela razão e em grande parte pelas experiências dos sentidos. Ou pela falta deles.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Malabares

Há quem diga: visão nublada não passa de miopia. Ou não. Visão nublada pode ser tanta coisa, como a neblina à beira do abismo, a vertigem flutuando ao redor da cabeça ou olhar para o mundo através de um copo d'água.
Sabe Deus porque não enxergo bem as coisas, talvez seja a combinação entre a falta de visibilidade, própria dos abismos, com a qual me deparo ao andar vertiginosamente pela milimetricamente indefinível linha que divide as metades vazia e cheia do copo d'água. Nem uma gota a mais, nem uma gota a menos. O limite.
Engana-se quem acredita ser confortável o (suposto) equilíbrio das coisas, já que esse estado não passa de uma tremenda indefinição. O meio não é lá nem cá e, de cima do muro, tudo é visto de longe,ao contrário. A equidistância é o menor lugar dentre todos os caminhos.
Querer cair não é, exatamente, desejar extinguir-se. É apenas se arremessar e a algum dos polos que tanto segmentam a existência, desfalecer para só então descobrir o que está do outro lado de si, a verdade que os olhos escondem, eternamente imóveis, do outro lado do espelho.
Em algum instante o malabarista há de suspirar de cansaço e falhar em sua missão: os sentimentos se espalharão como pequenas bolas de borracha pelo picadeiro, seguindo, livres, para onde tanto sonham, para um lugar onde não mais tenham de flutuar no ar como fossem estrelas tontas. Tudo há de explodir, enfim.