domingo, 31 de outubro de 2010

Crono continho

Casou e não sarou. Sim, ouviu aquela história de novo, de novo não. Nasceu precisamente às três da manhã -aquela, a hora de cinema! Um rabisco, a priori, depois o esboço que se fez corpo, então, alma, até virar memórias andarilhas e patéticas.
Guardava consigo o devir que nunca, que nada. E em cada flor meticulosamente costurada em seu vestido se via a nota trêmula um dia já semeada e jamais colhida. Arremessada de volta, talvez. Mas calma, não antecipemos as coisas. Nem a exageremos tanto assim.
Então conta.
Aprendeu a andar bem depois de conseguir cantar. Foi assim sim. Sério sério. Pequenina mal se segurava sentada e já agitava os bracinhos no mi mi mi, lá si. E olhar, então, um tudo, com aqueles mesmos ! Só não andava, dependia. Difícil é se equilibrar no chão quando se tem vocação para flutuar. E aí, não andou, demorou. Pulou o engatinhar, só ia de canto a canto. Cantando ainda, cantando, até os pés passaram a pianar.
Mas lembram de que só pôde andar quando o pai, desiludido, resolveu ensinar a andar com a cabeça. Enfiou-lhe o lápis na mão e se deu que andou. E correu. E todos os ponteiros, de todas as torres, pulsos, paredes e papéis, junto correram tão rápido a ponto de ela neles tropeçar. Foi a pressa, amiga da imperfeição. Foi fundo, doeu, se doeu, até parou no hospital por uns dias.
Que sina. Até quando o conheceu várias vezes. Ali, no seu canto, quis ele cantar também muito até cansar. E se cansou algumas outras vezes, para n'outras descansar. Vez nenhuma sarou.
A enganaram, tanto, assim, pobrezinha, prometeram que iria sarar, não tão depressa.
Ainda ninguém sabe que o tempo é outro quando se flutua...

domingo, 17 de outubro de 2010

godblessthedaylight

um corpo rodopião quebrando em três. joelhos, braços e pescoço - para o desamparo em que ninguém jamais deveria viver


Nessas horas fico sabendo que a vida é mesmo estúpida. Uma queda imensa muito estúpida. Um punhado de cores rolando para o desencontro deste abismo infinito.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

O Mundo Imaginário do Dr. Parnassus

Eu poderia, simplesmente, mentir e dizer que a presença de Heath Ledger no elenco de O Mundo Imaginário do Dr. Parnassus, dirigido por Terry Gilliam, não influenciou o meu interesse pelo filme. No entanto, ao contário de uma esmagadora maioria que ansiou por conferir o resultado da derradeira atuação de Ledger, o que mais despertou a minha curiosidade foi, com o perdão da palavra, a ausência do ator, que foi resolvida de maneira bastante criativa após sua trágica morte em janeiro de 2008, período inicial das filmagens.

Precisaria assistir a O Mundo Imaginário de Dr. Parnassus mais algumas vezes para começar a entendê-lo de verdade. Ainda assim, arriscarei algumas linhas confusas que tentam exprimir o imenso impacto que o filme provocou em mim.

"Começando pelo começo", falemos do protagonista da história: o Imaginário. Muito além de uma mera representação do pensamento humano, na película, ele é o grande responsável pela existência do Universo, seja ele coletivo ou individual. Desse modo, uma interpretação baseada em teorias psicanalíticas seria quase imediata, porém, não sou nem um pouco gabaritada para falar do filme nesses termos. Atenho-me, pois, aos aspectos subjetivos da obra, isto é, às imagens que refletiram meus sonhos e paixões.


O Imaginário é uma alegoria criada pela "grande mente" do Dr. Parnassus que, quando jovem, viveu em um mosteiro até o dia em que foi visitado pelo Diabo, o qual queria entender qual era a ocupação do monge. Ele explica que, assim como seus companheiros religiosos, seu dever era contar a história do Universo a fim de garantir a sustentação da vida. O Diabo, partidário da ignorância e do mundo apartado dos mitos, duvida dessa explicação e propõe, assim, uma aposta: venceria quem primeiro conquistasse 12 discípulos de suas respectivas crenças. "O poder da imaginação de transformar e iluminar nossas vidas", conforme contaria Parnassus, anos mais tarde, a sua filha, venceu "as necessidades do perigo, do medo, da lendária bênção da ignorância". Como prêmio, o monge conquistou aquilo que ele sempre havia cobiçado: a imortalidade. Passados alguns anos, Dr. Parnassus toma consciência de que a vitória não fora um ato de bondade do Diabo, mas sim uma desgraça anunciada: ninguém mais queria ouvir suas histórias.


É assim que o filme começa, com o Doutor e sua trupe - seus dois ajudantes e sua filha - vagando numa carruagem pela Londres dos dias atuais, imersa na linguagem de sua modernidade autossuficiente. Uma cidade que fala a língua do Diabo. A cena é visualmente impressionante não só pelo contraste entre a miséria urbana e a claridade onírica, mas também pela excelente direção de arte da película. Detalhes e cores estonteantes compõem o palco acoplado à carruagem onde Mercúrio, o mensageiro dos deuses, convida os transeuntes de uma rua londrina a viajarem através da imaginação por meio dos grandes poderes do Doutor.


Esteticamente semelhante a um teatro de marionetes, o espetáculo apresentado pela trupe de Parnassus nos faz lembrar de algo perdido em nós mesmos quando crescemos, mas que ainda repousa em silêncio dentro de nossas almas: a necessidade vital de caminharmos para dentro da imaginação. Ao atravessar o espelho localizado no centro do palco (uma belíssima metáfora que renderia linhas e linhas afora), o espectador entra em um universo inusitado, para não dizer um sonho bizarro, onde seu inconsciente se mistura à mente do Doutor.


Terry Gilliam cria, assim, uma das mais belas representações cinematográficas da humanidade que já vi. Pintando com as cores do absurdo o plano do mito, representado pela extensa teia do Imaginário, o diretor nos faz refletir sobre quem somos e de quê são realmente feitas nossas escolhas. Isso sem falar das ácidas críticas que ele faz contra diversas instituições de nossa sociedade: da Filantropia à Imprensa, nenhum de nossos hábitos grotescos é poupado da ridicularização.


E onde Heath Ledger entra na história? Ele interpreta (magistralmente, diga-se de passagem) Tony, um megalomaníaco encontrado, pela filha e pelos assistentes do Dr. Parnassus, aparentemente enforcado em uma ponte. Tendo perdido a memória após o incidente, ele passa a viver com a trupe do Doutor, reestruturando a apresentação do grupo a fim de atrair mais "clientes" - a cena mais hilária do filme, na minha opinião.


Ao que parece, Ledger faleceu nesse estágio das filmagens. Apesar de profundamente abalado com a morte do companheiro, como ele mesmo afirmou em algumas entrevistas, o diretor tomou fôlego e deu continuidade ao projeto de uma maneira genial e convidou três atores para interpretar Tony: Jude Law, Colin Farrell e Johnny Depp, amigo de Ledger. Dispostos a doar seus cachês para a órfã do ator, os três deram o último toque de genialidade em O Mundo Imaginário de Dr. Parnassus, fragmentando, brilhantemente, a imersão da personagem no plano da imaginação. Pena que a um preço tão alto.