quinta-feira, 29 de julho de 2010

As palavras e o argonauta

Explorando, aqui e acolá, o microuniverso demarcado pelas quatro paredes de meu dormitório, pouso numa terra vizinha às prateleiras, próxima ao satélite Aquário-Redondo. Lá, encerradas entre duas fileiras, algumas dezenas de livros e cadernos guardam passaportes para outros mundos, onde centenas de vidas habitam, eternamente, incontáveis galáxias de palavras.
Passo os olhos, da esquerda para a direita, de cima a baixo sorteio títulos e encadernações diferentes... Num átimo, suga-me o olhar o caderninho brochura. O interior da capa vermelha guarda um oceano de horizontes pautados, onde singra, no espaço solitário de uma página em branco, uma canoinha levando, dentro de si, as seguintes palavras de Fernando Pessoa: “Ler é sonhar pelas mãos de outrem”.
A pequena embarcação navega, por alguns instantes, de um olho a outro, até decidir, por fim, fazer dos meus pensamentos o cais de sua significação. Desembarcam, então, uma por vez. Pedem compreensão. Escuto todas com muito cuidado, porém, elas nada parecem dizer além do som de seus fonemas.
“Ler” e “sonhar” - uma ponte, de fato, desmoronou entre os reinos das metáforas e das conjunções! E, involuntariamente, logo após tamanha constatação, me vejo reconstruindo-a, buscando tijolos num depósito escuro, bem no fundo da memória, tentando resgatar a primeira vez que li e a primeira vez que sonhei,
Impossível: a lembrança das letras é deveras posterior à do sonho. Devo, pois, me lembrar da primeira vez que sonhei enquanto lia... Sonhos meus, sim, sim!
Reza a lenda que nossos sonhos são colagens animadas de nossas frustrações, sonhos ou desejos mais profundos. Desse modo, noite após noite, vemos pedaços da vida que não vivemos projetados, feito uma película, sobre nossos olhos fechados. Assistindo a esse filme de uma cópia só, tentamos resolver nossas pendências com o inconsciente (ou com nós mesmos). O resultado dessa experiência é, quase sempre, ambíguo: ora acordamos aliviados, ora profundamente angustiados.
Bravo! E não nos provoca mesmíssima coisa, a literatura? Incômodos, perturbações, sorrisos... Vemos tudo ali, impressa em papéis jornal e Masterset, nossa vida diariamente perdida e que, num ato desesperado, tentamos recuperar ao engolirmos, com olhos vorazes, sujeitos e predicados da existência que não nos pertence.
Num ato confuso - não sei, ao certo, se de aprovação ou censura -, embarcam apressadas as palavras de volta a seu período. Voltam todas para o mundo branco das páginas.
Devagarzinho, vai-se embora a canoinha, deixando atrás de si ondinhas pequeninas, uma dentro da outra, dizendo: “Para todas as vidas, um sonho por um livro”. Foi-se inteira, a canoa, para dentro do Pessoa. E eu, aqui, ainda encenando o final do derradeiro adeus, brincando com o que sobrou das grandes e pequenas ondas na onírica vastidão do pensamento perturbado...

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Poeminha para fazer dormir

Virou-se mar, virou-se onda

Em gota cada corpo nu

O movimento seco

Do vento cru

Lave o sal

Do sol, amor

Salpicando

Marsalgando

A maresia

azul

"Almas à Venda"


Fãs de Allen e Gondry: uni-vos!
Com elementos característicos dos filmes de Woody Allen e Michel Gondry, “Almas à Venda” estréia dia 9 de julho nos cinemas brasileiros



Talento e técnica, à primeira vista, podem ser entendidos como competências humanas complementares. Afinal, somente existe arte quando ambas se complementam, isto é, quando a técnica torna-se um meio pelo qual o talento se manifesta. No entanto, tal relação, quase simbiótica, esbarra numa dicotomia de ordem prática: técnica é matéria e o talento, alma.
O que se pode, pois, esperar de um ator desalmado? É exatamente isso o que acontece em “Almas à Venda”, comédia dirigida por Sophie Barthes. Na película, Paul Giamatti, o desajustado Harvey Pekar de “Anti-Herói Americano”, interpreta a si mesmo como um ator às voltas com seu atual trabalho: a peça “Tio Vânia”, de Anton Tchecov. Giamatti não só coloca demasiada dramaticidade numa interpretação que, para o diretor do espetáculo, deveria ser cômica, mas também é incapaz de se dissociar de seu papel ao final dos ensaios.
O ator passa, então, a se sentir, como ele mesmo descreve, “pesado”, quase deprimido. A fim de ajudá-lo a sair de tamanho impasse, um amigo sugere que ele conheça o “Depósito de Almas”, uma espécie de clínica dotada de modernos equipamentos capazes de retirar a alma de seus clientes e torná-los, assim, mais felizes. Qualquer semelhança com “O Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças”, de Michel Gondry, pode não ser mera coincidência.
Apesar de contrariado, Giamatti decide ir ao incomum depósito. Convencido pelo Dr. Flintstein (David Strathairn) de que, ao final do processo, sentir-se-ia muito melhor e seria mais em suas atividades diárias, o ator decide retirar sua alma. Sentindo-se “leve”, ele volta para casa e para os ensaios, mas não a sua vida normal: além de não conseguir interpretar Vânia como outrora o fazia, Giamatti torna-se um homem insensível, prejudicando o relacionamento com sua esposa, Claire (Emily Watson). Arrependido, ele tenta colocar sua alma de volta, porém, ela havia desaparecido. Giamatti inicia uma verdadeira peregrinação atrás de sua alma (e de seu talento), viajando, inclusive, até a Rússia, país onde fica a sede do “Depósito de Almas”.
Merecem destaque o humor irônico e as piadas feitas pelo protagonista sobre a própria tragédia, semelhantes àquelas feitas por alguns dos personagens típicos de Woody Allen. Tal comparação não é equivocada, já que a idéia do filme nasceu de um sonho que Sophie Barthes teve após assistir a “O Dorminhoco”, de Allen.
“Almas à Venda” é uma deliciosa e bem-humorada reflexão sobre a progressiva mecanização de nossa sociedade, na qual a tecnologia e o controlado pensamento racional sobrepõem-se às nossas desordenadas emoções. É, assim, um grito anti-positivista contra a desumanização do trabalho e da arte - esta última, cada vez mais “desalmada” dentro do que se convenciona chamar de Indústria Cultural.
Ainda flertando com a filosofia, o filme é uma tentativa de responder a uma questão constante na história do pensamento humano: desde o “mundo das idéias” de Platão, até o inconsciente freudiano, busca-se entender qual seria a força responsável pela personalidade do ser humano. Em “Almas à Venda”, essa força, a alma, além de poder ser retirada de uma pessoa e “inserida” em outra, tem forma, cor e textura específicas para cada corpo, caracterizando, assim, uma crítica à perda de individualidade com o avanço da técnica.
Caminhando entre a psicológica ficção científica de Gondry e o humor existencialista de Woody Allen, “Almas à Venda” traz uma válida mensagem sobre a sociedade contemporânea. Além de, é claro, contar com a imperdível atuação de Paul Giamatti.