Com bom desempenho em premiações, Argo explora
a metalinguagem como recurso narrativo
Talvez
o assunto me seja excessivamente caro, mas sempre busco observar o dilema da
representação da realidade em uma obra. Isto é, quais foram as saídas
escolhidas pelo autor para (a) expressar angústia diante do universo fugidio ou
(b) cumprir as exigências estabelecidas pelo chefe/produtor. É nesse sentido
que, para mim, começamos a falar de Argo -- aquele filme do Ben
Affleck, esnobado pela academia, enaltecido pelo bla bla bla, vencedor disso e
daquilo.
O
longa – meio drama, meio ação, meio espionagem –, acerta na construção da
tensão: a trilha sonora eleva-se na medida certa; cortes rápidos se combinam
com a câmera que, por vezes passeando pelas cenas, se comporta como uma espiã
infiltrada em organização inimiga. A única personagem com uma pitada a mais de
profundidade psicológica é o protagonista-herói Tony Mendez (Affleck), agente
de “exfiltração” da CIA, pai angustiado que não consegue acompanhar o
crescimento do filho, pois trabalha muito e cuja identidade secreta o impede de
colher os louros de seus triunfos.
Parafraseando
e resumindo a sinopse, Mendez é o responsável por resgatar, em 1980, cidadãos
americanos confinados no Irã (o processo que depôs o xá Reza Pahlevi e
instaurou o regime dos aiatolás ocorrera no ano anterior). Em plena Guerra Fria
e com as forças revolucionárias iranianas controlando ruas e fronteiras, a
solução encontrada pelo agente foi rodar um sci-fi falso, chamado Argo,
no país, aproveitando as paisagens desérticas.
Uso
a maioria dos verbos no modo indicativo porque, ora, já é sabido: a obra é
baseada em fatos reais. Como contar essa história, finalmente revelada nos anos
1990, e, ao mesmo tempo, criar uma ficção de fôlego é o aspecto mais
interessante da produção. Porque Affleck não escolheu o gênero documentário
como opção de verossimilhança. Ele elegeu a ficção e ela, neste caso, clama por
metalinguagem. Afinal, é um filme sobre uma ação em torno de um filme falso.
Não
é a primeira vez -- nem será a última -- que Hollywood volta-se sobre si mesma
em uma produção. Imagino que, da autocrítica definitiva feita pelo clássico Crepúsculo
dos deuses (1950, dirigido por Billy Wilder), pouco deve ter mudado
(e para pior). As piadas sobre o funcionamento eticamente questionável da maior
indústria do cinema ficam por conta das figuras do produtor e do roteirista
contratados para dissimular a mentira para a imprensa. Além disso, são várias
as menções a blockbusters da época, em especial a Star Wars.
Contudo,
o grande acerto de Affleck, creio, foi a exposição de seu laboratório de
(re)criação. O filme começa com uma longa sequência de storyboards, acompanhados
pelo off que explica os acontecimentos prévios à ação narrada. Em seguida,
imagens filmadas para a produção se misturam (quase imperceptivelmente, em
alguns casos) a cenas e fotografias da época. O efeito é inevitável: não há
dúvidas de que a história -- ou, pelo menos, o argumento central dela -- é,
sim, real. Nós, espectadores, entramos no jogo da verossimilhança, somos
transportados de maneira vertiginosa para a universo do filme. Assim, os
efeitos de tensão nos parecem mais latentes.
Obviamente,
usar imagens da época para contar histórias com respaldo na realidade não é um
recurso exclusivo de Affleck. Seu mérito está justamente em expor esse
mecanismo que, como dito, nos transporta com lucidez crítica para o interior da
ficção. Sabemos que estamos diante de um filme, que funciona dentro da lógica
industrial. Aliás, é constante a presença do storyboard do Argo falso (e
real). A realidade, em nosso Argo real, indicado ao Oscar (e também
falso), é o storyboard a ser atingido, e não apenas objeto de mera reprodução.
O jogo da metaficção mostra, aí, suas garras.
Fato
curioso e digno de nota: é justamente vivendo Mendez, incapaz de receber
honrarias, que Affleck consolidou seu nome como diretor.
Para
quem quiser saber o que aconteceu mesmo e o que foi invenção do roteirista, a BBC fez uma matéria bacana sobre isso.